O chinês que não falava cantonense

Por cá, chora-se a morte do jornalismo. Hoje (24.06.2021) vendeu-se a última edição do Apple Daily, um jornal pró-democrático de Hong Kong. A liberdade de expressão deixa pouco a pouco de morar aqui. De resto, aqui, a liberdade sempre foi demasiado bem comportada, de fachada, acomodada, e muito pouco libertina, libertadora ou “liberada”. 

Já não escrevo em português há tanto tempo. No outro dia, lia um livro em português ao meu filho e reparei na palavra “alvoroço”. O sabor desta palavra e a forma como ela se enrola na nossa boca dá-me saudades de Portugal. O cliché da palavra saudade associada a Portugal dá-me saudades de Portugal. 

Por cá, fala-se muito inglês, mas mal. No outro dia, lia um livro em inglês ao meu filho e reparei na palavra “mad”. Ele só queria que a palavra fosse “angry”, mas não, era “mad”. “Mad” rima com “sad”, “angry” quase que se confunde com “hungry”, o que é mau, porque quem está zangado não gosta que lhes perguntem se está com fome, ao passo que se estivermos “mad” e nos perguntam se estamos “sad”, faz todo o sentido. 

Eu quase nunca estou “sad”, mas às vezes fico “mad”, e pelas coisas mais insensatas, como no outro dia, quando fui a um prédio e pedi ao porteiro para ir ao 41º andar. Pedi em cantonense, o chinês do sul da China, e ele não percebeu. Não porque o meu sotaque fosse mau, foi mesmo porque ele não sabia falar cantonense, só mandarim. E saiu-me um “se não sabes falar cantonense então o que é que estás aqui a fazer?”, dito com uma voz zangada num cantonense que ele não percebeu, claro está.

Apeguei-me a esta língua que é mais patuá do que língua oficial, e decidi amarrá-la a um pau e fazer dela bandeira, o último vestígio da pouca liberdade que existiu por cá. Gosto de imaginar que, antes de chegarem os mandarins e os piratas portugueses, holandeses ou ingleses, por cá viviam pescadores pacatos a mandarem bocas uns aos outros em cantonense. As velhotas a mandar bocas umas às outras nos autocarros é a verdadeira essência desta gente. Assim como da nossa gente. Mandar bocas é o batimento cardíaco de uma língua, basicamente. 

No outro dia, na festa de fim de ano lectivo, quando os miúdos começaram a cantar, deu-me vontade de chorar. Eles todos alinhadinhos a cantar em mandarim, e os pais no auditório calados e desenquadrados, porque quando éramos pequenos ninguém sabia falar mandarim. Quando eu era pequena, os chineses de cá gozavam com os de lá de cima, um bocado como os portugueses de Lisboa gozam com o sotaque de Chaves, ou assim. (Ironicamente, mandarim soa a cantonense com sotaque de Chaves, com muitos “ssshhs” à mistura.)

A única coisa boa de usar máscara é que nos obriga a comunicar com os olhos ainda mais. Nós aqui temos a liberdade não admitida mas diariamente usufruída de poder tirar a máscara sem medo de apanhar Covid. Vamos roubando sorrisos uns aos outros, uns mais do que outros. Os portugueses são muito mais mal comportados do que os chineses. É o que nos resta do lado libertino da nossa liberdade lusitana, para além de Taprobana. Quando estudei os Lusíadas, fiz um pouco as pazes com Macau, foi assim que percebi um bocadinho melhor o que estava a fazer aqui. Isso e o filme, Império do Sol. Foi aí que me caiu a ficha e percebi o que era afinal a China. Para muitos a ficha só está a cair agora, mas poucos têm poupanças que cheguem ou força para se irem embora. 

Dizem que as crianças nascidas durante o Covid vão ter problemas de comunicação, por passarem tanto tempo com pessoas com máscara. O meu filho de um ano diz olá e rouba sorrisos a toda a gente, independentemente de falarem português, inglês, mandarim ou cantonense. 

Olhar para ele quando ele sorri, é a forma mais pura de liberdade.

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