Num certo dia de Dezembro de 2018, quando cheguei a casa às tantas da noite, já madrugada adentro e depois de mais um turno de trabalho, liguei a televisão e deixei correr as notícias enquanto me recompunha da dureza das horas anteriores. Estava a dar uma dentada numa maçã quando, estupefacto com o que estava a ver, até fiquei com o dito fruto preso inteiramente nos dentes por breves segundos.
Uma adolescente sueca de 15 anos tinha discursado em Katowice, na Polónia, na “Conferência Sobre Mudança Climática Das Nações Unidas” e as suas palavras invadiram-me o espírito como nunca nada nem ninguém havia feito.
Uma quase-criança tinha ido dizer aos adultos o que talvez precisassem de ouvir há muito tempo: que “as gerações futuras estavam em risco devido ao seu comportamento irresponsável e imaturo”; que “o crescimento económico eterno não mais era que um instrumento ao serviço da luxúria de uns poucos que fazem enormes quantidades de dinheiro à conta do sofrimento de muitos”; que “embora afirmem amar os seus filhos, na realidade não os amam porque estão a comprometer o seu futuro através da destruição da biosfera”.
As reações dos líderes dos países mais ricos não se fizeram esperar, tentando ridicularizá-la, acusando-a de estar ao serviço de interesses obscuros, de ter uma perturbação mental que não lhe permite ver a realidade como ela é e alguns até tentando amedrontá-la com ameaças à sua integridade física.
Noutro tempo, em quase todos os lugares, ou neste tempo, em algures lugares, esta garota, de seu nome Greta Thunberg, teria sido acusada de bruxaria, de heresia, de traição à pátria ou de um outro crime de atentado ao status quo. Por ter a coragem de pensar por si própria e por defender ideias fora da matriz dominante, teria provavelmente sido crucificada, queimada viva na fogueira, guilhotinada ou servida um cálice de veneno na sua cela.
Diagnosticada, aos onze anos, com “Síndrome de Asperger”, ser diferente sempre foi uma constante na sua vida. O Síndrome de Asperger diz respeito a uma perturbação neurodesenvolvimental no espectro do autismo, que leva o indivíduo a ter uma ideia muito particular na forma como se relaciona com os outros e com o ambiente em geral, provocando um quadro comportamental prejudicial ao normal desenvolvimento social percebido pela maioria. Pessoas com Síndrome de Asperger têm dificuldade em interpretar da mesma forma que a maioria a linguagem verbal e não verbal, são indivíduos mais propensos a interpretar as coisas literalmente, apresentando dificuldade em entender o sarcasmo, metáforas ou expressões incomuns, por exemplo. Desenvolvem, por vezes, a fixação por um determinado comportamento, repetindo-o, ou por um assunto, em particular.
O Síndrome de Asperger, outrora considerado uma entidade psiquiátrica, hoje em dia, corresponde ao grau mais leve dentro da “Perturbação do Espectro do Autismo”, segundo o DSM-5 (Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais 5ª Edição, da Associação Americana de Psiquiatria, 2013).
Para alguns autores este quadro representa uma variação normal do comportamento humano e quem dele padece até revela uma inteligência normal ou acima da média, não apresentando dificuldades no desenvolvimento da linguagem e na comunicação como as apresentadas em graus mais severos de autismo.
De facto, é muito curioso que seja uma pessoa diagnosticada com “Síndrome de Asperger” a produzir este discurso, pois só alguém com estas características poderia ver claramente o jogo farsante que jogamos todos os dias uns com os outros. A recusa do mundo social autista parece manifestar-se aqui, na não-aceitação da doutrina que nos regula. Segundo a jovem discursante, “o mundo não pode ser mudado pelas velhas regras. Têm que se fazer novas regras”.
Neste sentido, podemos ver esta forma de perceber e sentir a vida social como uma limitação aos olhos de muitos, mas também como um “super-poder” aos olhos de poucos.
Ela própria, Greta Thunberg, afirma no seu Twitter, em resposta a alguns ataques feitos a si e à sua condição psiquiátrica: “Eu tenho Asperger e isso significa que, às vezes, sou um pouco diferente da norma. E, nas circunstâncias certas, ser diferente é um super-poder. #aspiepower.”
Segundo ela, quase todos nós entendemos que não vamos estar cá daqui a uns anos ou poucas décadas e, por isso, não nos interessa verdadeiramente se o equilíbrio ambiental vai ser comprometido. O que nos interessa é ser populares aos olhos dos outros. O teatro com que nos entretêm os políticos não distrai a natureza e a dinâmica física das coisas. E também não a entretém nem a distrai a ela.
O que nos veio dizer foi que o equilíbrio ambiental está já, neste momento, comprometido – não se trata de uma ameça no futuro, quando já cá não estivermos. Esta já é a nossa realidade e este problema deve ser tratado como uma crise.
Falava não só para os políticos, nos quais não acredita, mas também para todos nós, uma vez que sem mudança individual de comportamentos não se darão alterações urgentes para que o equilíbrio ambiental perdido seja, de alguma forma, restabelecido. Sendo certo que esse objectivo não será cumprido nas gerações viventes, nem nas próximas.
Não me espanta que seja uma pessoa que ainda não tem primaveras suficientes na sua vida a ter uma perspetiva das mudanças climáticas que as identifique como uma emergência em vez de alguém com mais inputs do ciclo climático, alguém com mais idade. Afinal, essa pessoa, a mais nova, vai realmente ter de viver toda a sua vida sob a égide das condições desequilibradas imaturamente provocadas pelas gerações anteriores e não vai conseguir explicar aos seus filhos e netos porque não se fez nada em relação a isso enquanto havia tempo para o fazer.
A Bruxa de Estocolmo, como carinhosamente lhe chamo neste texto, é filha de mãe cantora, pai actor, avô paterno actor e realizador de cinema e avó paterna actriz. Estando a sua família ligada às artes cénicas e com o “super-poder” de reconhecer a farsa do teatro político em particular e da vida social em geral, não tem medo de ser impopular, lutando pela sobrevivência do planeta vivo tal como o conhecemos, pelo futuro das gerações atuais e vindouras e de todos os outros seres que dele dependem.
A legítima vontade que as próximas gerações têm de viver a sua vida na plenitude das condições ambientais experimentadas por gerações anteriores não será entregue de “mão beijada” por ela e pelos que partilham de ideias semelhantes a ela. Especialmente não para que uns poucos vivam luxuosamente enquanto cá andam.
Imagino que, tomando conhecimento da doutrina de Greta Thunberg, alguns políticos e outros por ela visados terão, inclusivamente, dito para si próprios a famosa frase em castelhano: «No creo en brujas, pero que las hay, las hay»
#Aspiepower.