Durante a pandemia, cresceram-me dedos verdes1.
Jardinar tornou-se uma paixão, talvez sempre latente no Touro que sou. Touro é terra, a terra primordial onde nasce a vida quando o ar do meu ascendente Balança se transforma na água da minha lua em Caranguejo, e chove. Se o meu cocktail astrológico me torna talvez propensa a sentir os ciclos da natureza de forma mais evidente, jardinar é uma actividade a que qualquer ser humano está, naturalmente, apto.
Manter plantas saudáveis é, acima de tudo, um jogo de observação. Quando se começa a observar as plantas que nos rodeiam com curiosidade e carinho, criam-se laços de empatia interespécie que nos vão permitir ‘entender’ a planta, ‘senti-la’ e do que precisa. Tal como uma trepadeira, esses laços vão conquistando paredes dentro de nós, revelando-nos insights sobre a vida, o universo, a condição humana, nós própries.
Quando criamos empatia com as plantas, e as sabemos relativamente dependentes da nossa acção, passa a ser difícil ignorar o seu choro. Ao contrário do que muita gente pensa, as plantas são incrivelmente comunicativas, só que a sua linguagem não se propaga pelo ar, como a nossa, mas pela água que circula dentro delas. A fluidez do tempo “plantelário”, muito à semelhança do que se passa com o planetário, funciona como uma máquina do tempo: o que observamos hoje nas folhas das plantas (ou na luz das estrelas que chega até nós) é um reflexo do passado. Na verdade, as raízes (o ‘cérebro das plantas’) estão já à frente no processo biológico de serem plantas, isto é, de cumprirem o seu código genético da forma mais eficiente possível, considerando as condições ambientais. E no fundo, ser-se planta, ou insecto, ou ave, ou mamífero, ou símio, ou humano não tem objectivos assim tão diferentes… Ou seja, o que se manifesta hoje já vem sendo sentido pela planta há algum tempo, o que implica que a vigilância seja um processo constante e dedicado.
O que distingue o reino vegetal do animal é a mobilidade ( entre outras coisas, provavelmente, não sei, não sou bióloga…). Porque os animais se mexem, desenvolveram um sistema que lhes permite fazer escolhas: o sistema nervoso, do qual o cérebro é o órgão principal. Sem possibilidade de movimento ‘livre’ – as plantas mexem troncos e folhas para optimizar a sua relação luz/sombra e expandem raízes para chegar à água que precisam mas são incapazes de mudar completamente de lugar mesmo que a sua sobrevivência dependa disso – as plantas não precisam de ‘decidir’. Vivem apenas, ou morrem, caso os humanos que as clonaram, tiraram do seu habitat, puseram em potes de plástico barato e tóxico para as levarem para um sítio novo não saibam honrar a vida transplantada e a eles confiada.
Adoptar uma planta, ou clonar uma planta, é um acto de enorme responsabilidade. Incapaz de se mexer, a planta ficará total e completamente dependente de nós para sempre, ou até ser devolvida à terra (e mesmo nesse caso o é já que a sua sobrevivência dependerá, pelo menos até certo ponto, do local onde a plantarmos).
As instruções que nos dá a etiqueta de importação, ou a florista, ou o local onde a planta a que tirámos um pézinho crescia, são apenas referências subjectivas que nos podem ajudar a entender como cuidar do novo ser que juntámos à família. Afinal, o que significa ‘pouca água’ ou ‘apenas sol da manhã’ ? (O que significa ser-se sensível, aventureiro, chato, caprichoso, etc? Quantos conceitos absolutos existem na linguagem para além dos números definidos?)
A razão pela qual as plantas mais choram é água – regra geral, e especialmente para plantas ‘de interior’, água a mais. Aqui, importa reforçar um ponto crucial: as plantas não comem água. Elas precisam de água para fazer fotossíntese (o processo de converter energia solar nos joules que precisam para viver, crescer e se reproduzirem) tal como nós precisamos de relações interpessoais para nos desenvolvermos. Mantendo a metáfora, é mais fácil para uma planta recuperar de um período de seca do que ser inundada por amor a mais durante demasiado tempo – a raíz, tal como alma, fica mole e apodrece com humidade constante sob pressão.
Passados anos a observar as plantas com que me rodeio percebi que tudo é sinusoidal. Ritmo, tudo é ritmo. Ciclos. Para as plantas, ciclos de água e seca, ciclos de luz e penumbra, ciclos de calor e frescura. Cada planta tem o seu comprimento de onda, umas bebem mais água, outras precisam de mais fotões, umas gostam de água nas folhas para refrescar, outras de lugares frescos e secos. E a única forma de ajustar essa equação é observar: as folhas da begónia estão amareladas, vou experimentar não regar até à terra ficar completamente seca para ver o que acontece (as begónias, tal como as violetas, gostam que se lhes ponha água num pires por baixo do vaso quando a terra está completamente seca, gostam de a sugar e não de a sentir escorrer….)
E, de cada vez que ajusto a fórmula a uma das minhas plantas, ajusto a minha fórmula também. Estar em sintonia com as plantas implica aceitar irrevogavelmente a sua natureza (se plantarmos uma monstera no topo de uma colina exposta à torreira do sol o dia inteiro ou uma suculenta num pântano, estas irão certamente morrer). Então, porque haveria de ser diferente com os animais, outros seres humanos ou mesmo nós própries? Porque haveríamos nós de querer que um aventureiro jogue pelo seguro ou que uma pessoa sensível decida friamente ou que alguém chato nos entretenha senão para tentar dar algum conforto ao nosso ego frágil e inseguro?
No entanto, nada nos dará mais segurança do que a aceitação da realidade como ela é, o que implica naturalmente a aceitação de quem somos: apenas um entre 7 mil 674 milhões de outros egos humanos na nossa própria viagem de superação e sobrevivência. Ser quem somos não é nem bom nem mau, como não é melhor ser uma alfazema do que um manjericão embora um possa ter melhores hipóteses de subsistir em determinadas condições do que outro.
Mas, ao contrário das plantas, podemos mexer-nos, e procurar as condições que mais potenciam a nossa natureza a crescer, a nossa criatividade a florescer e a nossa razão a dar frutos.
1 Da expressão idiomática: (To have) Green Fingers, caracterizando alguém que “tem jeito para plantas”