O corpo é que paga

“Quando a cabeça está convencida de que ela é a oitava maravilha, o corpo é que sofre”

António Variações

Num mundo humano onde a produtividade desenfreada e sem rumo é praticamente a única lei válida que nos posiciona em relação aos demais seres que constituem a nossa complexa rede social, deixamos para trás algo fundamental: o nosso corpo.

No mundo humano do “quanto mais, melhor”, a qualidade (dar ao corpo o que ele precisa) é renegada para um plano secundário em detrimento da quantidade (do que temos que produzir para alimentar o estilo de vida que fomos desenvolvendo assente em crescentes e incessantes necessidades).

A tecnologia que fomos desenvolvendo para nos servir ao longo dos 2 milhões de anos de evolução do género Homo, aos poucos, começou a escravizar-nos, fazendo-nos esquecer as nossas verdadeiras origens e o propósito do corpo humano enquanto organismo que precisa de movimento em pé, ao ar livre e com luz solar.

Em dados de 2019 noticiados num boletim oficial das Nações Unidas (news.un.org), a Organização Mundial de Saúde (OMS) sugere que a falta de exercício físico pode ser “responsável por mais de 5 milhões de mortes em todo o mundo, a cada ano, em todas as faixas etárias”. Acrescenta ainda que “mais de 23% dos adultos e 80% dos adolescentes não são suficientemente activos fisicamente”. As recomendações desta entidade destacam também a “importância da actividade física nos primeiros cinco anos de vida, como forma de desenvolvimento motor e cognitivo, promovendo a saúde para a vida”. “Mais brincadeira e menos ecrã” é a fórmula que sugerem.

Com uma anatomia que evoluiu para andar grandes distâncias a pé, fomos progressivamente deixando essa natureza, sentado-nos excessivamente durante várias horas por dia.

A cadeira, em todas as suas formas, é o típico objecto inventado pelo Diabo. Apresentado como veículo de bem-estar, depressa se torna fonte de variados problemas homeostáticos que podem ocorrer no nosso organismo (o Diabo parece adorar este tipo de partidas). Apenas as utilizamos há menos de 6 mil anos e o seu uso generalizado e em massa pelo mundo inteiro terá muito menos tempo. O nosso corpo não está feito para tal objecto. Nem ele feito para o corpo, por mais que pareça. Ficamos sempre a perder ao sentar-nos. Mas é nessa posição que demasiados de nós passam a maior parte do dia.

Desde cedo somos educados a sentar-nos. No berçário, no carrinho de bebé, no jardim de infância e durante a utilização de meios digitais precocemente fornecidos. A fazer necessidades fisiológicas, nos transportes, na escola, nas refeições, na praia, a ver um espetáculo, numa consulta médica ou mesmo a namorar, estamos sempre sentados. Mesmo o andar de bicicleta é feito na posição sentada. E alguns de nós até ridiculamente tentam sentar cães às suas ordens, tal a importância deste comportamento na nossa cultura. É curioso observar que, quanto mais nova é uma criança, menos tendência ela tem para se sentar. Mas cedo essa tendência natural do corpo humano para desenvolver actividade em pé se vai desvanecendo em detrimento da integração social e cultural.

Numa anatomia em que a visão evoluiu para se tornar um sentido chave em quase todas as nossas actividades, um tipo de flagelo associado ao estilo de vida que fomos desenvolvendo diz respeito a problemas oculares que se estão a tornar verdadeiras epidemias. Nomeadamente por passarmos muito tempo dentro de espaços interiores, focalizarmos demasiado em ecrãs com luminosidade não adequada e por as actividades de focalização ao perto estarem a aumentar em todo o mundo. Num estudo de Junho de 2020, noticiado pelo mesmo boletim, a OMS refere a Miopia como “um problema de saúde global”. Estima, neste estudo, que “até 2050, 52% da população mundial sofra de Miopia”. Em 2010, apenas 10% da população mundial sofria desta perturbação ocular. A prevenção far-se-á no exterior e com umas boas horas de luz solar, focando ao longe por mais tempo. Este aspecto, mais uma vez, ganha especial relevância nos primeiros anos de desenvolvimento. E, mais uma vez, actividade ao ar livre, menos interior e menos ecrã serão a chave na prevenção.

Associada a problemas cardíacos, Diabetes Tipo ll ou vários tipos de câncer, a obesidade é outro grande flagelo causado pela falta de actividade física saudável e pelas más escolhas alimentares. Segundo dados da OMS publicados em 2019 e noticiados na fonte supracitada, “o número de crianças e adolescentes obesos aumentou de 11 milhões em todo o mundo em 1975 para 124 milhões em 2016”. Mais que decuplicou. Não vou referir outra vez qual será o tipo de comportamento que servirá na prevenção.

Poderia ainda falar de saúde mental, de perturbações que cresceram exponencialmente neste século, como a depressão e a ansiedade, ou alguns tipos de cancro que estão cada vez mais detalhadamente associados ao sedentarismo.

Uma catadupa de problemas que podem resultar do estilo de vida que fomos trilhando ao longo dos últimos milénios e que nos aprisiona cada vez mais através da repetição dos mesmos comportamentos por excessivas horas e da construção inconsciente de uma rotina demasiado preenchida, através da qual nos robotizámos, sem questionar se será esta a forma como queremos viver. Simplesmente aprendemos a viver assim e perpetuamos o que aprendemos.

Estamos sentados a maior parte dos cerca de dois terços do dia em que estamos acordados, quando devíamos andar de pé por muitas horas numa actividade física saudável. E o corpo é que paga.

Passamos a maior parte do tempo em espaços interiores, quando o nosso corpo evoluiu ao ar livre durante milhões de anos. Apenas há poucos milénios começámos a estar mais dentro dos equipamentos que concebemos para o desenvolvimento das mais variadas actividades humanas do que ao ar livre. Assim, sacrificamos os níveis de Vitamina D que é produzida pela luz solar e é essencial na absorção do cálcio; como sacrificamos estar em contacto com vírus, bactérias e outros microscópicos seres o que afecta a capacidade de resposta do nosso sistema imunitário, por falta de interacção com os mesmos. De facto, só conseguimos sobreviver com tão pouco contacto com o exterior porque vamos buscar Vitamina D aos variados alimentos a que temos acesso. Mesmo populações como os Esquimós, do Círculo Polar Ártico, só conseguem sobreviver num corpo humano com tão pouca luz solar durante o ano porque compensam na variada alimentação que conseguem (as focas, por exemplo, servindo de alimento, providenciam Vitamina D).

A falta de luz adequada, vulgo luz solar, está a adoecer os nossos olhos que evoluíram para focar a maiores distâncias durante mais tempo. Mas cada vez mais focamos ao perto por mais tempo. E o corpo é que paga.

As horas de trabalho são excessivas, para não dizer ridiculamente excessivas e, apesar de se notar um incremento na consciência de tal facto, ainda temos um longo caminho a percorrer no sentido de encontrar mais justiça nesta dimensão fundamental da nossa vida. Apenas há poucos milénios teríamos trabalhado muito menos. Mas também tínhamos muito menos bens para assegurar. Para que trabalhemos menos, teremos que ter necessariamente menos. Mais uma vez quem paga é o corpo. E não só.

Desde há umas décadas que deixámos de cuidar dos mais velhos, porque não temos tempo. E, para isso, pagamos uma exorbitância de dinheiro a um lar, muitas vezes sem condições materiais e humanas para que quem gastou grande parte da sua vida assegurando a nossa sobrevivência passe os seus últimos dias indignamente.

Desde há décadas que não convivemos o suficiente com os nossos filhos porque não temos tempo. Pagamos para que os eduquem e, essencialmente, para que tomem conta deles durante os longos períodos de trabalho que temos.

E com estas despesas, temos que trabalhar mais, ser mais competitivos, comer à pressa, comer pior, respirar pior, ter piores corpos, piores espíritos, ser piores pessoas.

Há uns poucos dias, tomei conhecimento que o período de luto em Portugal para pais que perdem um filho é de 5 dias. Acho que isto diz tudo acerca do meu ponto de vista. Pergunto se vale a pena sacrificarmos vidas inteiras por esta lógica? Não viver, para viver melhor.

Com o tempo que despendemos a trabalhar e a tratar dos mais variados aspectos da nossa vida, mais o tempo que despendemos individualmente a ser produtos de infindáveis estratégias comerciais na lógica acima descrita, o nosso corpo vai ficando para trás.

Há uma excessiva valorização de quase tudo o que faz mal ao corpo. Uma falta de cultura motora gritante na sociedade ocidental, que não se nota tanto, por exemplo, na sociedade asiática, onde a falta de cultura em relação ao que o corpo precisa é muito menor. Ainda assim, esta é uma tendência mundial e o próprio mundo oriental vem sendo, aos poucos, tomado por esta lógica. É perturbador verificar que esta tendência, em vez de diminuir, com o acesso que temos hoje à informação, está a crescer exponencialmente. Será que não queremos fazê-lo? Ou será que a cultura, os valores e a dinâmica social que nos regem não o permitem, promovendo a cultura da mente sem corpo e aprisionando-nos em espaços interiores por períodos cada vez mais longos?

Para que possamos fazer um caminho contrário a este precisamos de tempo, de não estar exaustos, de dormir bem, alimentar-nos bem, sentarmo-nos menos e fazer mais actividade física ao ar livre, beneficiando de luz solar. Ou o corpo é que paga.

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