Res cogitans

Das infinitas estratégias que a vida vai usando com o desígnio de melhorar o seu desempenho, por forma a perdurar, a cooperação é das que mais força tem.

É uma forma de os seres se potenciarem, de irem além daquilo que conseguiriam sozinhos. Quer seja de uma forma mais orgânica, através da simbiose, por exemplo, ou de uma qualquer relação ecológica interespécies benéfica para ambas as espécies, quer seja através de uma forma mais sensorial e cognitiva intra-espécie, ampliando estas capacidades através da partilha de conhecimento e da aprendizagem.

Nos mamíferos esta dinâmica de cooperação é levada mais além, através da empatia, da partilha de emoções, da vontade de cuidar. Este facto é especialmente observável em grupos como os proboscídeos (elefantes), cetáceos e primatas onde o investimento na aprendizagem dos mais novos por longos anos e a partilha de conhecimentos são consideradas como fundamentais para a sua sobrevivência.

Na nossa espécie este aspecto é ampliado ainda mais através da cooperação em quase todos os aspectos da nossa vida. A acção humana abrange tantos espaços, tantos tempos, é tão especializada, que fomos criando, aos poucos, uma rede de partilha de informação e emoções, uma mente colectiva que estende o indivíduo cognitivamente, libertando-o dos limites da capacidade individual.

Toda a complexidade social dos mamíferos, por nós levada ao extremo, originou, a determinada altura, o desenvolvimento de uma linguagem, onde pudemos passar a descarregar em outras memórias dados nossos e receber novos dados de outras memórias com grande precisão e em grande quantidade, aumentando a nossa capacidade sensorial, emocional e de construção de novos conhecimentos.

Ao mesmo tempo, fomos desenvolvendo a capacidade de descarregar informação em plataformas, espaços físicos, objectos. Através da tecnologia o ser humano foi aumentando a sua capacidade sensorial. As ferramentas que fomos produzindo tornaram-se extensões do corpo e da mente. Esta dimensão ganhou especial acuidade com a ciência, através da qual podemos começar a sistematizar os novos dados recolhidos em matrizes teóricas sustentadas por métodos experimentais e pela revisão de pares.

Depois de um começo de inspiração computacional e cérebro-cêntrico, as Ciências Cognitivas, já no fim do séc. XX, começaram a abordar a perspectiva de que a dimensão da vida mental ultrapassará os limites do cérebro, e do corpo inclusive, estendendo-se ao ambiente e aos objectos, sociais ou não, com que vamos operando. A relação de um corpo, enquanto sujeito, e de como age em conexão com objectos exteriores será a base de todo o processo cognitivo. Esta nova perspectiva exprime a ideia de que o cérebro opera num e para um corpo. Recebe, sente, processa e opera através desse corpo, em dinâmica total com o ambiente.

Afinal, quem poderá negar o uso de todo o corpo nos processos cognitivos em acções como quando se comunica (linguagem não-verbal), tactear certos objectos para ter informação acerca da temperatura, sentir o cheiro da terra húmida sinalizando quando começa a chover ou processar sentimentos como quando nos abraçam?

A abordagem filosófica e científica da relação mente-corpo já é uma velha história, que tem num dos seus primeiros autores o médico romano Galeno, do século II. Galeno, tentando responder à pergunta acerca de como o organismo humano transmite e recebe informação, conceptualizou os “espíritos animais”, substância de característica gasosa destilada a partir de sangue do cérebro e transmitida para os músculos através das, já conhecidas na altura, fibras nervosas. Hoje sabemos que este processo se dá através de impulsos eléctricos conduzidos por estruturas neuronais denominadas axónios.

Esta teoria de Galeno prevaleceu por muitos séculos, ao ponto de, no séc. XVII, Descartes ainda a defender. De acordo com Descartes, corpo e mente têm naturezas diferentes. Atribui ao corpo as mesmas características do espaço físico, o qual denomina de “Res Extensa”. E atribui à mente características únicas, à qual chama “Res Cogitans”. Os mesmos “espíritos animais” de Galeno representam o modo de transmissão, através da glândula pineal, de informação entre a mente e o corpo.

Apesar de se referir também a uma “Res Divina”, que é perfeita e infinita, Descartes é considerado o primeiro filósofo moderno porque, não só começa a demarcar desta questão a ideia de Deus como força motriz dos processos mentais, mas também porque põe em evidência o “sujeito pensante”, elevando definitivamente o Homem a uma categoria superior em relação aos demais organismos, dando início ao Racionalismo.

A perspectiva teórica da cognição corporificada começou levemente a desenhar-se já em meados do séc.XX com Piaget que definiu a base de toda a aprendizagem por esquemas sensório-motores através dos quais a relação com o objecto vai definindo a estrutura cognitiva.

Mais recentemente, já no final do séc.XX, Andy Clark e David Chalmers, e também Francisco Varela e Humberto Maturana desenvolveram esta ideia e exploraram a tese da “mente estendida”, segundo a qual não existirão limites físicos claramente identificáveis para os processos cognitivos.

Quem poderá negar que os nossos processos cognitivos se estendem a objectos como pinturas rupestres, um hieróglifo talhado numa pedra, um livro, uma lista de compras, um computador, uma ementa de um qualquer restaurante, uma televisão, uma obra de arte, um espelho ou um mero Cubo Mágico dos anos 80?

Os trabalhos de Edwin Hutchins sobre a cognição socialmente distribuída e a nova realidade do espaço cognitivo distribuído numa rede complexa mediada por computadores também se destacaram nas últimas décadas.

Com o advento da Inteligência Artificial, a questão de até onde se estendem os nossos processos cognitivos será amplamente alargada. A primeira robot humanóide, de nome Sophia, criada em 2016 em Hong Kong pela Hanson Robotics, já deu início a esta nova espécie de seres que irão revolucionar toda a nossa vida.

É certo para a Psicologia e para as Ciências Cognitivas que não podemos dissociar o desenvolvimento cognitivo, emocional e social. As cooperações cognitiva e afectiva evidenciadas pelo ser humano surgem em paralelo no contexto de cooperação social dos mamíferos acima referido.

É também certo que o desenvolvimento destas dimensões pressupõe a maturação de processos biológicos individuais como o sistema nervoso e o sistema endócrino.

O estudo da forma como os organismos conhecem e processam informação (cognição) não poderá ser perspectivado através do isolamento de uma destas dimensões e a busca de unidade nesta questão e noutras dentro das Ciências Psicológicas é um “osso bem duro de roer”.

Afinal, o que é a mente? O que é a consciência? O que são as emoções? Como se relacionam? O que é a inteligência? Por que meios e processos é que o organismo conhece? Onde começam e onde acabam os processos mentais? Mente é corpo? Mente é objecto também?

Estas questões continuam e continuarão a suscitar muitas e novas dúvidas. Mas houve algo que mudou já um pouco: o enfoque teórico e prático de que o comportamento humano provém das necessidades biológicas do organismo em contexto dinâmico, em detrimento da visão humanista, antropocêntrica e estática que evoluiu desde a Grécia Antiga até quase ao final do séc. XX.

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