Há umas poucas semanas atrás li um artigo do jornalista Pedro Soares Botelho no 24.sapo.pt acerca da falta de mão-de-obra na hotelaria, agricultura e indústria, intitulado “Que mão de obra falta realmente?”
Comentando as queixas do patronato acerca da dificuldade que estão a ter para cativar trabalhadores que preencham as suas necessidades operativas, este jornalista toca num ponto infrequentemente trazido à discussão pública — “as notícias (…) raramente contam que valor os patrões estão dispostos a pagar e a que condições vão estar esses trabalhadores sujeitos”.
Recolhendo ecleticamente os comentários por parte das diversas entidades envolvidas nesta questão, começou pela Secretária de Estado do Turismo que referiu a exigência por parte dos trabalhadores de “melhores condições”.
O Presidente da Associação de Hotelaria de Portugal referiu um estudo recente que aponta para a “falta de 15 mil trabalhadores nos hotéis”. A solução que esta entidade patronal sugere é o recrutamento em países da CPLP, especialmente no Brasil.
O lobby do patronato dos hotéis logo produziu o resultado esperado, com o Ministro da Economia a afirmar que o acordo de mobilidade com a CPLP, cuja ratificação é esperada para breve, “vai precisamente facilitar a circulação de pessoas, nomeadamente a vinda de trabalhadores que o sector do turismo diz precisar fazer”.
Foi ouvido ainda o porta-voz da Federação dos Sindicatos de Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal, referindo que esta solução representa “a ganância do lucro”.
O porta-voz da federação de sindicatos que representa, entre outros, os trabalhadores daquilo a que genericamente se chama de “hotelaria” (cafés, restaurantes, bares, discotecas, alojamento) refere que, para poderem continuar a explorar trabalhadores com baixos salários, vão buscá-los ao estrangeiro em vez de pagarem salários justos e apresentarem condições dignas para os que foram violentamente despedidos na pandemia porque não precisavam deles. Refere ainda que “80% dos trabalhadores dos hotéis e demais estabelecimentos de alojamento recebem o salário mínimo nacional e trabalham aos fins-de-semana, aos feriados”. Feitos os devidos descontos, no fim do mês são 590 euros que um trabalhador destes leva para casa. Fala ainda dos 2 dias de folga que raramente são cumpridos e das condições violentas a que estas pessoas estão sujeitas devido à “instabilidade total nos horários”, o que leva a uma grande falta de tempo e imprevisibilidade na gestão da vida pessoal e familiar.
Trabalhei em restauração durante 12 anos e posso dizer que as palavras do representante do sindicato são justas, do ponto de vista de quem por ele é representado.
De um ponto de vista filosófico-existencial, e havendo uma pequena franja de empresas que dão condições mais favoráveis do que acima foi descrito, onde o trabalho se faz relativamente bem, onde há organização e vontade de evoluir, trabalhar nesta área significa, para a grande maioria, não viver, mas sim sobreviver. Significa vivermos numa dimensão à parte, em contacto com o real, mas, em vez de sermos parte plenamente integrante desse real, servimos quem nele vive.
Quando os outros estão a trabalhar, nós estamos a descansar. Quando os outros estão a chegar ao fim da manhã ou da tarde de trabalho, começamos nós. Sim, a descansar, porque, na realidade, não há horário nem corpo para tratar da nossa vida; limitamo-nos a aplicar cuidados paliativos às tarefas de uma vida pessoal moribunda e a atingir mínimos existenciais.
Com os anos, os nossos amigos já nem nos convidam para as festas de anos ou do que seja, não porque não querem estar connosco, mas porque somos um caso perdido de comparência. Não estamos nesta dimensão. Vivemos numa realidade paralela.
Comemos o que há e não o que escolhemos. Saímos à hora que nos deixarem sair e não à hora estipulada com regularidade, estando sujeitos a este escrutínio duas vezes por dia, 6 vezes por semana. Nalguns sítios, almoçamos às 16h e jantamos às 19h. Nem temos tempo de digerir o almoço como deve de ser, se assim lhe posso chamar.
A intensidade violenta a que estamos constantemente sujeitos, a rapidez com que temos que decidir, a inteligência que temos que ter para servir uma grande quantidade pessoas em tão pouco tempo, articulando cozinha, sala, reservas, take-away, todo o trabalho de limpeza que constantemente fazemos, toda disponibilidade por nós demonstrada ao submeter-mo-nos a horários tão estendidos no dia, merecem, com certeza, melhores salários.
Sempre entendi o porquê dos seis dias por semana, o porquê dos horários partidos, o porquê de não se pagar devidamente as horas nocturnas, os feriados, os fins-de-semana, as passagens de ano, pelo valor que a lei estipula para as outras áreas. E o porquê é o seguinte: melhor forma de explorar, de espremer um trabalhador. São sempre os mesmos que estão lá os 6 dias da semana em que os estabelecimentos estão abertos, no caso da maioria dos restaurantes. O valor pago é mínimo, a exigência é máxima.
Basicamente, elege-se a “hotelaria” como a única em que estes direitos não podem ser aplicados. É uma área onde o lobby do patronato é quase desnecessário uma vez que toda a sociedade acredita que a ganância, a exploração e a indiferença sistemática em relação às condições oferecidas aos trabalhadores desta área são um mal necessário. O crime contra trabalhadores é normalizado.
E estes princípios estão a estender-se à indústria, à agricultura (que, por experiência própria, era uma área onde se faziam 8 horas certinhas e não havia exploração), à saúde, em particular no sector público. Quem não tem assistido ao triste espectáculo do Governo submeter os médicos e os enfermeiros a uma exploração desumana durante os tempos de pandemia. Quem não assistiu às notícias de Odemira, onde trabalhadores vindos do Bangladesh trabalham doze horas por dia na agricultura.
É evidente que os cidadãos estão a perder os seus direitos, estão a perder poder de compra e o poder de ter tempo para tratar de si e dos que gostam. O foco mantém-se no lucro de uns poucos e não no bem-estar das pessoas e dos seres, em geral.
O número de pessoas que já não acredita neste modelo económico de “velho mundo”, onde a dominação e o interesse próprio prevalecem em detrimento do bem-estar dos demais, é cada vez maior. Daí que comecem a não existir suficientes trabalhadores dispostos a aceitar estas velhas e caducas condições. E isto é, para mim, evidência de que as pessoas estão melhor informadas, têm acesso a informação como nunca tiveram e começam a ter mais autonomia intelectual.
Parece ter chegado o ponto de inflexão que era inevitável na hotelaria e também noutras áreas, como a indústria, a agricultura, a saúde e, porque não dizê-lo, na educação, onde os professores do público estão há décadas sujeitos a condições de deslocação humilhantes para garantir a sua colocação.
Se olharmos para esta questão de uma perspectiva histórica, pode residir aqui uma etapa chave da anunciada e já iniciada há poucos séculos profecia de substituição laboral do Homem pela Máquina.
Na hotelaria, já operam robots há uns poucos anos, carregando pratos, fazendo algum serviço de quartos e até já há “Smartbeds”, como no caso da cadeia Yotel, onde a Inteligência Artificial realiza já muitas tarefas que, até agora, eram feitas por humanos vivendo em realidade paralela, vulgo trabalhadores da “hotelaria”.
Mas antes das máquinas e da inteligência artificial, e com a ajuda do Governo, ainda têm os trabalhadores dos países da CPLP para explorar e na agricultura os do Bangladesh e quem mais vier.
Ninguém vai morrer se aumentarem os salários. Mas muitas pessoas vão ter uma vida mais digna. O que vai ter que acontecer, mais tarde ou mais cedo.
Na área da “hotelaria”, e particularmente na restauração, paralelamente a quase todas as actividades que comportem um grande número de pessoas em espaços fechados, o ritmo vai ter de abrandar, algumas ideias e crenças vão ter que mudar e o futuro já se iniciou há uns bons anos com a tendência a começar a beneficiar os produtos locais, com baixa pegada carbónica, recuperando ingredientes endémicos, com mais foco no valor nutritivo e com novos conceitos de horário, em que só fazem o almoço ou o jantar e não os dois turnos num dia.
Mas haverá mais a fazer, na minha opinião, como uma melhor articulação entre as Ciências da Nutrição e Restauração, deixando de lado uma vertente mais “show off”, quase sempre com pouco equilíbrio nutritivo, e promovendo a saúde e a educação nutritiva dos clientes.
Com as crianças haverá muito trabalho a fazer. Na maioria dos restaurantes não há espaço para elas, não há criatividade para as incluir verdadeiramente.
Também no que diz respeito à Ergonomia há também muito a fazer para elevar esta área a outro patamar, uma vez que os espaços são amiúde desenhados e produzidos sem ter em conta a dinâmica de utilização do restaurante, sem se ouvirem os utilizadores e isso têm bastante impacto na qualidade do serviço, como aquela mesa em que temos que incomodar mais os clientes do que propriamente servi-los porque não temos espaço para tal, as cadeiras imensamente desconfortáveis, os candeeiros com um grande design mas que os clientes batem lá com a cabeça cada vez que se levantam, um excessivo número de mesas, onde não se garantem circuitos de passagem de duas pessoas lado a lado, a tampa da sanita que não segura porque não há espaço, as torneiras serem manuais em vez de pedal ou a porta de entrada que não está devidamente protegida do frio e no inverno e traz desconforto aos clientes.
E todas estas dimensões, melhor trabalhadas, seriam activos importantes no negócio.
Há tanta coisa por fazer. Mas parece que a grande maioria dos empresários não tem mais ideias e querem continuar a fazer como no século passado. E muitos de nós já não estamos para isso.