A mata é de todos

Duas pessoas a passear cães, duas pessoas a passearem-se a si próprias: um empate técnico. Foi este o resultado da minha contagem de hoje no matagal. Costumo ir regularmente à mata das Caldas da Rainha, um lugar silencioso e espaçoso, estranhamente pouco frequentado pelos munícipes. Para quem não conhece, é um dos melhores espaços das Caldas, cerca de 17 hectares de floresta que se localizam à saída da cidade. Talvez devido à parca presença humana e abundante vegetação, é um bom sítio para desanuviar, devanear, correr, saltar e, claro, ir passear o cão. 

Reparo na dedicação e amor que algumas pessoas têm com o seu animal de estimação. Por vezes o tempo não está muito simpático nem ameno, mas continuam na sua missão nobre de dar felicidade ao seu companheiro ou companheira. O charme da pata na lama é universal para qualquer canídeo que se preze. 

A minha mãe, que é avessa a ter animais de estimação em casa e nunca se deixou convencer pelo charme da pata na lama, guarda religiosamente os ossos que restam da comida. Uma amiga vem regularmente buscar o tal tesouro canino para o cão da filha. Amor por animais de estimação não falta, agora a parte triste, é ser só por algumas espécies. 

Basta passearmos pela cidade e espreitar as ementas da maioria dos restaurantes para observar a dissonância cognitiva e o absurdo dos nossos valores. Animais tão ou mais inteligentes que os nossos de estimação são expostos no menu como apenas mais um prato de comida. Somos dissociados e esquecidos que também foram um animal como nós, à procura da felicidade. Vivem em condições degradantes e deploráveis que nós, humanos nunca imporíamos ao nosso charmoso de pata na lama, tenho a certeza. E também jamais o comeríamos, nem que estivéssemos às portas da morte, sem alimento. 

A psicóloga social Melanie Joy, no seu livro “Why We Love Dogs, Eat Pigs, and Wear Cows” descreve uma nova ideologia moderna, chama-lhe ‘Carnismo’ e define-a como um sistema de crenças invisível que justifica a matança de certas espécies de animais para consumo da sua carne. 

Existe uma incongruência paradoxal no nosso comportamento: opomo-nos aos maus tratos animais na generalidade, mas aceitamos (ou fingimos que não vemos) que haja excepções no caso da carne para consumo humano. Acaba maioritariamente por ser uma questão cultural, a espécie de carne que comemos, e esquecemos os problemas éticos que a nossa cultura cria.

Se contarmos ainda os malefícios ambientais para o planeta causados pelo excesso de consumo de carne e derivados, o erro da nossa conduta e do que permitimos torna-se óbvio.

É extremamente absurdo que um pacote de leite chegue a custar por vezes menos de 50 cêntimos enquanto um pacote de uma bebida de soja custa cerca do dobro. Estes preços só são possíveis porque a produção de leite é altamente subsidiada na União Europeia e os preços baixos na distribuição obrigam os produtores a terem margens mínimas de lucro, o que se reflecte nas condições dos animais explorados. Será que alguém pensa nisso quando vai ao supermercado?

Todos nós podemos evoluir, é possível seguir os bons exemplos que vêm de fora. Em Berlim os restaurantes a que fui tinham sempre pelo menos uma opção vegetariana no menu, não porque seja obrigatório, creio, mas porque há efectivamente um avanço da sociedade civil quanto à preocupação com o bem-estar do animal e, consequentemente, com o bem-estar do planeta. Não é miserável só haver uma omelete com queijo, batatas fritas, arroz e salada (nem sequer totalmente “vegan”) quando se vai aos restaurantes de norte a sul do país?

Cabe-nos a nós mudarmos o nosso comportamento enquanto consumidores, temos de estar mais atentos à proveniência da nossa comida e também a como são tratados os animais para o nosso consumo. Devemos sem demora pressionar o governo e municípios a implementar leis mais progressivas em relação ao bem-estar animal.

A mudança também começa dentro de casa, a geração mais velha e mesmo a minha mostra pouco interesse em mudar os seus velhos hábitos alimentares. Todas as desculpas servem para manter o status quo. Uma alimentação mais virada para o veganismo é mais cara, menos saborosa, menos prática, dizem. Se em alguns pontos tudo isso é discutível, o que não é discutível é que o excesso de consumo de carne causa maus-tratos a animais e destruição ambiental. 

Em vez de deixarmos a geração-Z só com posses materiais, porque não deixarmos um planeta para eles viverem melhor? E sem esquecer a nossa consciência, não é bonito vivermos num sítio que trate bem todos os animais independentemente do nosso favoritismo? É bonito e possível, sonho com o dia que alguém vá passear o seu porco à mata.

* não sou “vegan” mas esforço-me por ter uma dieta semi-vegetariana.

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