Alguém me disse uma vez que as duas faces da minha cara são diferentes e que uma representa o “Luís Mau” e a outra o” Luís Bom”.
Só podendo ser produzida por alguém que nos conhece profundamente, esta observação foi talvez a que melhor me definiu enquanto ser.
Vim ao mundo num parto difícil. Uma cesariana. Nasci todo roxo, com peso a menos, como que expressando que talvez não fosse boa ideia ter nascido.
O meu lado negro sempre foi uma presença muito forte na minha vida. Lembro-me de bem cedo na infância ele estar já lá bem presente.
É algo que nasceu comigo. É uma força fugidia, obscura, incontrolável e, ao mesmo tempo, equilibrante.
Não tem, em mim, nada a ver com elementos esotéricos, espirituais. O meu lado negro emerge das entranhas da contradição entre a vida e a não vida. Não é humano, é terreno. Não é etéreo, é territorial.
É o Thanatos de Freud, força que visa a satisfação de impulsos agressivos e destrutivos mas, ao mesmo tempo, promove o regresso, o retraimento, o descanso. Pulsão que tem por objectivo levar a vida orgânica de novo ao estado inanimado. Pulsão da morte, pulsão do que está antes da vida.
É a renúncia à Vontade de Schopenhauer e às esperanças inalcançáveis em que só no Nada há salvação.
O encontro com o outro, com a vida em geral, provoca em mim sempre a necessidade de regressar, de voltar à possível não-vida de alguém que se encontra vivo.
Durante a minha infância, sentia sempre que este meu lado tinha que ser controlado. Sentia a contraditória força mas quanto o meu lado negro crescia na proporção inversa do que eu o quisesse minguar.
E, durante um certo período, o período em que não temos que fazer escolhas definitivas, consegui controlá-lo.
Num estágio mais tardio da minha ontogénese, ele fez-se sentir com mais intensidade e disse-me: “não podes fugir de mim”. E aí, passei a carregá-lo como um fardo pesado.
Apesar de ainda pesar e de não haver forma de o controlar, hoje, pesa menos. Ainda estou a aprender.
Despojado de pré-conceitos e representações desnecessárias, acedo hoje ao meu lado negro sem receios, pois ele é tão importante quanto o seu oposto.
Posiciono-me novamente perante algo que é mais primordial que tudo o resto: o não viver, o não necessitar, o não sentir.
Tomo o comprimido vermelho do “Matrix” na esperança de saber de onde vim, pois este medica melhor as minhas maleitas que o açucarado comprimido azul da positividade.