Em vez da substância humana, continua a cultivar-se a apresentação exterior; a adaptabilidade, e não a independência interior, é remunerada. Hoje, estes pressupostos dão-se mais do que nunca os ares de ‘humanismo’ e ‘filantropia’. Cada vez mais frequentemente o terror oculta-se por detrás de caras sorridentes e daí parte com a amabilidade de um comportamento aparentemente respeitador. Por isso, tornou-se mais difícil identificar a verdadeira doença da nossa época.
Arno Gruen, A Loucura da Normalidade
Mais ou menos em 2013, não me recordo exactamente do ano, uma então colega de trabalho — hoje, amiga — falou-me durante uma refeição em conjunto de um filme norte-americano chamado Idiocracia, de 2006.
O filme retrata a experiência de um soldado seleccionado para um período de hibernação experimental que corre mal e através do qual avança no tempo 500 anos até 2505.
A personagem depara-se então com um cenário cosmopolita em que as colinas das cidades não são feitas de rocha e plantas mas de lixo sedimentar, em cima do qual se constroem mais prédios.
Descobre, então, uma sociedade que vive uma distopia, onde o marketing, o consumismo, a indiferença nas questões ambientais, a preguiça intelectual, a normalização da violência e a incoerência de noções de justiça e direitos humanos são vigentes. Tudo isto resultando de uma selecção genética de características desvantajosas, uma disgenia, que foi evoluindo a partir de determinada altura e que culminou numa sociedade uniformemente idiota que bebe “Gatorade” em vez de água.
Sendo uma crítica ao caminho percebido pelo director Mike Judge que a sociedade americana estava a trilhar, piorando exponencialmente desde 2001, em vez de melhorar, esta tese foi 10 anos mais tarde confirmada com a eleição de Trump.
À semelhança dos tentáculos de um polvo, fornecidos de cnidoblastos, células urticantes que libertam toxinas, imobilizando as presas, para que seja mais fácil caçá-las, os tentáculos da extrema-direita política na última década na Europa, no mundo ocidental e também no restante planeta, apresentam uma evolução que continua a corroborar a ideia do referido realizador.
O discurso populista, elementarmente simplificado e com laivos de ódio, é o ritmo da ideologia destes partidos, normalmente de face autocrática, invocando o passado glorioso das nações, a religião, os valores tradicionais da família e o direito de determinados grupos serem mais dignos que outros no acesso ao trabalho, à saúde, à cidadania, em geral. Estes são os direitos, referem, “das pessoas de bem”, defendendo uma segregação cultural justificada normalmente pela raça. Fazem crer que somos mais pobres e vivemos menos dignamente por causa de determinado grupo de pessoas.
Por vezes, como no caso de Hitler, fazem crer que esses “aviltantes seres” não são bem humanos, iguais às “pessoas de bem” e, por isso, se deve proceder à sua eliminação.
O logro, o embuste e o ardil estão na base da sua retórica, que, tal como o polvo ao propelir as ditas toxinas, se aproveita da ignorância dos demais.
A negação das questões ambientais, a negação dos conselhos científicos, a negação dos benefícios da população branca nos países anteriormente colonizados e a preguiça intelectual em aderir a teorias místicas e conspiracionistas, bem como a negação da derrota eleitoral, quando a mesma bate à porta, invocando fraude, são também condimentos, já fora de prazo, diga-se, deste rançoso e de mau gosto cozinhado político.
Noticia o Público em 07/10/2019 que, desde o dia anterior, data das eleições legislativas em Portugal do mesmo ano, e com a entrada de André Ventura no parlamento, passaram a existir apenas três países na União Europeia em cuja extrema-direita não está representada em órgãos de poder. A saber: Irlanda, Luxemburgo e Malta.
Hoje, o Chega tem 12 deputados na Assembleia da República, com 7,5 por cento dos votos, representando a terceira força política em Portugal.
Em Espanha, o partido Vox, que postou em 2020 uma imagem do Mapa de Portugal anexado a Espanha, invocando o passado glorioso da Dinastia Filipina, também já é a terceira força política.
Em França, em que a subida da extrema-direita tem sido acentuada depois da primeira ronda das eleições de 2022, na qual Macron e Le Pen disputaram “taco a taco” os votos no país que nos ensinou o caminho para a liberdade.
De facto, a grande subida da extrema-direita em França não se fica por aqui, uma vez que o gaulista, bonapartista e defensor da teoria conspiracionista da “Grande Substituição”, o candidato Eric Zemmour, obtém, à mesma data, um destacado resultado com 7,1 por cento do votos, somando em conjunto com Le Pen mais de 30 por cento dos votos contra 27,8 por cento de Macron. Ou seja, a extrema-direita, neste momento, está em maioria neste país, o que revela ser um péssimo indicador.
Na Hungria, com o primeiro-ministro ultraconservador Viktor Orban, figura que desde 2019 tem investido na criação de um eixo de extrema-direita na Europa, associando-se numa primeira linha a Salvini, da Itália, e a Mateusz Morawiecki também primeiro ministro da Polónia, este último acusado por Macron de tentar ajudar Marine Le Pen nas eleições de 2022 com o seu apoio.
Na Turquia, com o ditador Erdogan, que viu suspensa a tentativa de entrada para a União Europeia, após um relatório de 2019 da mesma entidade ter revelado a falta de garantias relativamente à existência de um Estado de Direito no país, depois de mais de 150 mil pessoas terem sido presas como consequência da tentativa de golpe de estado em 2016. Destas, 78 mil foram, na sua grande maioria, acusadas de terrorismo sem provas conclusivas, segundo o site Euronews.com, no dia 13/03/2019. O mesmo relatório, citado na mesma fonte, descreve também o encerramento de mais de 160 órgãos de comunicação social, o elevado número de detenções de jornalistas e o bloqueio de mais de 1400 páginas de internet durante a governação vigente. Releva também, para além da falta de liberdade de imprensa, a falta de liberdade religiosa, a discriminação contra as minorias e o elevado nível de corrupção no país.
A extrema-direita também já se encontra no poder na Áustria, na Noruega e na Dinamarca, onde já governa em coligação e na Suíça, onde o SVP lidera a representação das duas câmaras do parlamento desde 2015, conseguindo dois dos sete assentos no Conselho Federal.
Também na Holanda o PVV já é a terceira força política. E na Bélgica, em 2019, um partido de extrema-direita, o VB, foi chamado, pela primeira vez desde 1934, a pronunciar-se sobre a formação do novo governo, tendo sido recebido pelo Rei Alberto II, algo que já não acontecia desde que Leon Degrelle, conservador que pouco mais tarde se tornou apoiante nazi, foi chamado pelo Rei Leopoldo II com o mesmo objectivo.
Na Alemanha, a extrema-direita também tem crescido e a AFD já é a terceira força política e na Suécia o SD obteve 17 por cento dos votos em 2019, sendo quase inevitável a sua subida ao poder em 2022.
Em Inglaterra, a guinada para terrenos mais laterais da direita política deu-se em 2019. Embora o Partido Conservador não seja considerado de extrema-direita, Boris Johnson, durante a campanha eleitoral do mesmo ano, adoptou posições nacionalistas que foram consideradas por muitos analistas como próximas das ideologias de Trump ou de Bolsonaro, tendo suavizado o seu discurso depois da vitória nas eleições.
O grande ponto a favor de Johnson será o facto de ser uma pessoa mais culta do que o Presidente do Brasil e o antigo Presidente dos Estados Unidos, uma vez que foi jornalista, historiador e já tem uma longa carreira política. Ainda assim, caiu na tentação de radicalizar o seu discurso na campanha eleitoral, com os benefícios conhecidos, e as suas posições culminaram com a saída dos britânicos da União Europeia, no já conhecido Brexit, com as consequências que sabemos.
E ainda a autocrática e conservadora situação da Rússia e da Bielorrúsia, da qual sobejamente temos sido informados ao longo das duas últimas décadas.
Esta é a situação na Europa, assim por alto, pois, se falarmos no resto do mundo, e tendo em conta governos que, independentemente de serem considerados de esquerda ou de direita, são considerados pelo mundo democrático como autoritários e totalitários, verificamos que nos BRICS, bloco de países económicamente emergentes, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, esta tendência está claramente em maioria e a convergência política dos mesmos é cada vez maior, como se viu com o recente apoio do ex-presidente da África do Sul, Jacob Zuma, a Putin e com as visitas do russo a Pequim e de Bolsonaro a Moscovo no período de contagem decrescente para a guerra da Ucrânia.
Também na linha conservadora radical se encontra a Bolívia, onde a ex-senadora e presidente interina, Jeanine Añez, entrou no parlamento com a Bíblia na mão, num país onde se estima que 60 por cento da população não é católica.
Na Venezuela, com Nicolás Maduro, apoiante de Putin, onde taxas de inflação absurdas e uma enorme crise de abastecimento e de poder de compra levaram o país à falência. Os corruptos políticos hipotecaram o país, às custas do petróleo. A ganância encheu-lhes os bolsos em vez de distribuir a riqueza e investir no país.
E nas Filipinas, com o Presidente Rodrigo Duterte a levar os europeus na Conferência do Conselho de Direitos Humanos da ONU de 2019 a pedir a abertura de uma investigação internacional contra as suas alegadas políticas de execução, que estimavam já ter vitimado 27 mil pessoas.
E todos estes países alinham deliberadamente neste “eixo do mal” que cresce a cada dia que passa e ao qual assistimos dormentes como se de uma telenovela se tratasse.
Se juntarmos as teocracias do Médio Oriente e as tendencialmente pouco democráticas políticas dos governos africanos, o cenário não se afigura nada bom.
Numa fase de desenvolvimento em que deveríamos evoluir para viver segundo algo como um Índice de Desenvolvimento (não Humano, mas) da Vida, onde à mesma é concedida a oportunidade de continuar a expressar a sua substância, estamos, de facto, a ficar mais idiotas, pois, com certeza, não serão estas bacocas propostas que evitarão o abismo para o qual gerações e gerações de ancestrais com as mesmas ideias nos encaminharam.