Ultimamente, tenho tido problemas com a palavra. Falada, escrita, desenhada, descrita como som ou executada num movimento: toda a forma de comunicação que tem uma intenção subjacente é palavra, e a maioria de nós tem um vocabulário muito curto tanto para codificar como para descodificar mensagens de outros seres, humanos ou não, e do ambiente que nos rodeia. E ao que parece, o vocabulário meta-linguístico é tão mais curto quanto mais frequente for o uso dessa mesma palavra.
É uma intuição talvez um pouco capitalista : quanto mais usarmos a palavra, menos valor ela tem; menos cuidado temos em parar para verdadeiramente analisar o que queremos dizer de modo a escolher as palavras mais adequadas, acabando demasiadas vezes nos lugares comuns e absolutamente desprovidos de conteúdo como ya, sabes, aquelas cenas meio meh.
Mas enquanto que a falta de diversidade de palavras para nomear realidades específicas é um problema que cada pessoa pode trabalhar individualmente, mediante alguma disciplina e determinação, o problema da afinação da relação entre sujeito e objecto, de forma a que um e outro se sobreponham total e absolutamente, parece impossível: pois se sujeito e objecto não tem tampouco as mesmas letras, como se poderão sobrepor total e absolutamente?
Se o verbo e o movimento que ele evoca são dissonantes, será que uma pessoa não sabe correr se nunca tiver aprendido a sua palavra? Ou será que corre melhor a pessoa cujo cérebro nunca se tenha debruçado sobre o que significa correr, nem aquele mínimo indispensável para lhe associar uma palavra?
O ano passado, o silêncio barrigou caminho até assumir controlo das casas centrais no tabuleiro da minha vida. Veio como uma nuvem de vácuo, sugando-me para o seu vórtice. Tal como vemos nos documentários, no fundo do mar ou no topo do universo, onde não há ar por onde a palavra se possa propagar, a pressão é sufocante. O buraco negro do não-espaço penetra no corpo chupando o ar que há entre cada célula para trás de si, para fora de nós, tal e qual turbina de um avião que avança implacavelmente; lá fora, o mundo movimenta-se e conversa ao mesmo ritmo de sempre, mas até essa consistência parece perder significado à medida que deixa de haver espaço que permita a troca de eletrões interneuronalmente. Sem sinapses neo-corticais a anunciar fatalisticamente o rumo dos acontecimentos do organismo a cada micro-segundo, este entra numa existência preservada em vácuo conceptual, perfeito e hermético, onde intenção e manifestação se encontram sem intermediários ou razão de ser.
Arejar a palavra com silêncio tem-se revelado uma prática essencial na metabolização da existência diária: depois da contracção, o corpo encontra novos espaços para expandir a consciência; depois do congelamento compulsivo, a palavra renasce livre para novos sentidos.
A compressão é aliviada. No espaço intersticial renova-se o vazio; este novo pedaço de não-ser do qual nos apropriamos é a matéria prima da criação, universo em potência dentro de nós. É neste umbigo que o mundo se vira no seu reverso; é deste umbigo que começa a reconstrução do ser, molécula a molécula.
A mensagem do não-ser, a frequência da não-palavra, movimento na impotência, resiliência na fluidez. Nada existe sem o seu oposto. Liberdade é poder pendular nessa ambiguidade, rebolar inconsistentemente ao longo de toda a escala de possibilidades a nosso bel-prazer, criar questionar destruir e voltar a iniciar o ciclo semântico sempre que este não sirva mais.
Percebem agora o meu problema com a palavra? Ela nasceu para libertar os seres humanos das limitações animalisticas, revolucionando as suas possibilidades perante o mundo, perante outros seres e perante si propries; mas enquanto existir sem honrar o seu oposto, a palavra aprisiona a mente a uma pequenez que cresce incrementalmente.
Inspeccionando o silêncio, honrando-o, venerando-o até, ganhamos espaço para nos ouvir. Só no silêncio absoluto podemos perceptir a mais ínfima reverberação da nossa frequência; só na ausência da palavra podemos afinar os sentidos até ouvirmos o sexto e o sétimo: a capacidade de ver o futuro (intuição) e a capacidade de comunicar sem palavras (telepatia).
Estou ciente de que nada disto é uma epifania universal — desde a antiguidade que os grandes livros e as grandes mestres sintetizam : expressa-te completamente e depois cala-te completamente.
O tigre rugiu a sua mensagem, e seguiu, selvagem, sem se preocupar com o coelho que lá vem. A ver, o que traz na cartola…