Coisas, coisinhas e coisonas

Chega uma certa altura da nossa vida e reparamos na quantidade infindável de objectos que adquirimos, objectos que acumulam horas de vida ao sabor do pó; são roupas que nunca usamos, livros que nunca lemos, discos que nunca ouvimos, acessórios de cozinha que ganham ferrugem, recordações de viagens que já não cabem nas estantes e gavetas, e que precisam de uma nova disposição. Começam por ser unidades, facilmente se expandem para as dezenas e acabam em centenas de coisas, coisinhas e mesmo algumas coisonas, que tomam conta simultaneamente da nossa vida e da nossa casa. São os objectos mortos que coabitam connosco à espera de um dia terem outro propósito que não seja apenas a existência num vazio de existência.

O mundo moderno tem destas coisas: estamos tão absorvidos pela vida em redor do trabalho amontoando itens para que um dia, com o devido tempo e disposição, possamos usufruir das actividades que nos dão prazer e volúpia. Desejamos usar a tal peça de roupa que comprámos para fazer um trilho numa manhã de outono; queremos ler tranquilamente no sofá, ou num parque verdejante, o tal livro guardado; almejamos ouvir o tal disco num dia de inverno a beber chá quente; pretendemos preparar aquela receita demorada e deliciosa, a desfazer-se devido à humidade e que foi escrita em papel pela nossa avó, com o tal acessório de cozinha especializado; ambicionamos arrumar as tais recordações de viagens, de modo que não seja apenas mais um amontoado confuso, de memórias distantes e difusas. Mas falta-nos o tempo, não há ninguém que disso discorde. Há tempo para discordar?

Com a chegada da era pandémica, em 2020, debrucei-me com mais rigor sobre a problemática do adiar. Esperamos que o tempo desacelere na nossa vida sem esperarmos que a nossa vida desacelere com o tempo. Há uma corrida frenética para fazer, para ter e para comprar. Somos entorpecidos pelas actividades que queremos concretizar com os nossos objectos. Não conseguimos ter espaço na nossa existência para lidar com tamanha quantidade de desejos de fazer. Preparamo-nos para os concretizar, sem nunca os realizar devido à desorganização que é viver. Fazemos um plano generalista e difuso na nossa cabeça, para quando chegar a altura certa, podermos concretizar o que está na lista infinita de coisas a fazer.

Decidi ir em sentido contrário, fazer menos, desacelerar, apanhar o tempo pelas costas e fazer-lhe uma rasteira. Decidi que não iria comprar nada durante um ano, tudo o que fizesse parte do rol interminável de livros, discos, roupas e objectos a estrear teriam de ser suficientes até ao próximo ano. Um objectivo modesto mas, ao menos, um caminho novo. 

Passados uns meses da resolução, lutei contra a infindável quantidade de coisas que propus a mim mesmo fazer em anos distantes. A pilha de livros virgens encolheu; os discos foram ouvidos, pouco a pouco; algumas receitas foram feitas com a sua devida lentidão; outros quantos souvenirs foram organizados de forma estética e lógica, aprimorando a lembrança do passado de um viajante. 

Tive bastante prazer em finalmente conseguir dar uma certa ordem e uso à parafernália de coisas, coisinhas e coisonas que povoam o sítio onde habito. Foi uma campanha de turismo “vá para fora cá dentro”, fechei o meu mundo exterior ao consumismo e a novos estímulos. Os meios de comunicação e o trabalho esgotante distraem-nos, fazem com que adquiramos mais objectos do que precisamos ou tenhamos tempo para usufruir. A solução no combate ao tédio, inércia e desperdício encontra-se próxima e em redor de nós. Está na altura de olharmos mais vezes para os nossos armários, estantes ou gavetas e cumprirmos com o compromisso que fizemos com os objectos, que são o rastro do nosso viver e dar-lhes o devido uso. O planeta agradece, e a nossa vida também.

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